É proibido proibir

Os paralelos da rua de professor Abel Salazar estavam negros dos óleos e petróleos dos carros e a cidade do Porto era ainda vazia e dessaturada depois das oito da noite. Na sede do antigo ICBAS, sem os estrangeirados que haveriam de regressar para a Universidade do Porto ou os Erasmus que viriam a tomar conta do Carmo, dominavam uns cinzentões, por entre os quais surgiu um grupo estranho que se juntou num anfiteatro para falar do Maio francês, como na altura se chamava ao Maio de 68. Antes de tomar o meu lugar na barricada, tomei café no Âncora d’Ouro, quase vazio, a observar alguns que poderiam ser os amigos de Manuel António Pina (ou “o Pina”, se quiserem dar-se ares) ali sentados.

Depois do café e das leituras, atravessei a rua e encontrei o anfiteatro num instante. Eu e uma dúzia de pessoas que se sentavam naquelas cadeiras de tampo rebatível, entre eles os tais eventuais amigos d’O Pina, os do Piolho, que agora estavam ali talvez a imaginar como se veriam se tivessem menos vinte anos. Ou como eu os veria, eu que nem 18 anos tinha e queria encontrar a praia por debaixo dos paralelos. E, de certa forma, encontrei-a nos dois graúdos que estavam de pé, a falar do que tinha sido o Maio francês e de como tinha cá chegado, ou melhor na síntese que fiz do que disseram.

Um deles (escrevo-o sem certezas mas confiando na minha memória fisionómica) era o Álvaro Macedo. Depois de cirandar de um lado para o outro, sentou-se em cima da mesa do professor e, interrompendo um qualquer discurso sobre a liberdade conquistada e não-sei-quê, perguntou se algum de nós se importava que fumasse: “o discurso da liberdade é muito bonito mas a frase principal de Maio era ‘é proibido proibir’ e um gajo entra aqui para falar de Maio e leva logo com os avisos idiotas ‘é proibido fumar’.” (se posso confiar na minha memória fisionómica e se era o saudoso fotojornalista, generoso ser humano, convém explicar que fumava dois a três maços por dia).

A praia, encontrei-a, lá está, fazendo a síntese do nos contavam: Liberdade, liberdade, liberdade.

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Escif, Valência

O Maio – que é hoje em dia um daqueles meses que merece ser conhecido apenas por um ano, como o Abrilvai ser festejado em grande este ano. Na limpa e vigiada Paris, Escif irá criar a ilusão de marginalidade com os seus grafitos, a universidade terá debates com o pretexto de “reinventar o espírito” de 68, haverá uma exposição chamada “coreografia da revolta” e, ao todo, 9-nove-9 instituições (como em “instituições-instituições”, sem tretas) estão envolvidas nas celebrações. Imagino que não se possa fumar a menos de cem metros dos eventos, que a comida seja a da ementa do poder, do de então e do de agora, e quem sabe se os armazéns Tati não farão uma coleção de t-shirts alusivas ao evento.

Entretém-te, filho, entretém-te. E consolida, não te esqueças, consolida, filho. Atapeta o submundo, atapeta as calçadas, os paralelos da calçada.

Claro que o Maio de 1968 não é de ninguém e que o poder de hoje, a narrativa atual, tem tanto direito a festejá-lo como nós — que o dispensamos — mas daí a fazer uma síntese liofilizada no 50.º aniversário parece-me idiota, tão idiota como ouvir o Moustaki e pensar que a sua soixante-huitard ideia de felicidade é a mesma de Macron.

Basta, aliás, ver onde estão e estiveram uma boa parte das caras conhecidas do Maio de 1968, e dos que se chamavam seus herdeiros – nomeadamente em Portugal –, para se perceber qual a narrativa do Maio de 1968 que vai passar à história.

De tal forma é assim que, empoderado pelos conhecimentos que a divina casta do revolucionarismo nanterriano e fumando um Gauloises e Gitanes no bidé, posso adivinhar como vão ser as after-party das comemorações. Mais ou menos assim.

Ou seja, muito diferente daquele anfiteatro do ICBAS. Tão nos antípodas como esteve o Maio francês das comemorações do Maio de 68 que aí vêm. Deviam proibi-las.